quinta-feira, novembro 19, 2009

Dentes

Era uma noite como outra qualquer, em uma das muitas cidades pelas quais já havia passado, não havia nada de especial. Era início de noite, segurava uma xícara grande de café quente. Eu ensaiava umas idéias, nada relevante. As horas no relógio passavam como se não tivessem pressa de completar o dia... Minha matéria vagava por esse espaço sem tempo, sem substância...
A mulher ao lado dizia que passava mal, parecia estar falando já faziam alguns minutos, mas eu não dei importância. Então, com um alicate, saído sabe-se lá de onde, ela começou a retirar seus dentes como se fossem peças de montar. Sangue por toda a mesa, demonstrando não se importar com o pequeno show de horrores, um a um eles eram retirados. Dizia algo sobre alívio e fardos, coisas sem sentido, pelo menos para mim... Eu continuava a tomar o meu café, já quase frio, enquanto os dentes de minha colega de mesa formavam alguma espécie de círculo ritual inconsciente, no rosto da mulher não havia dor, nem gozo, nem qualquer emoção que conhecesse ou desconhecesse. No rosto haviam apenas pequenas rugas que circundavam a sua boca e que delineavam umas linhas de sangue e a saliva rosada que pendiam de seus lábios carnudos e bem definidos, parando somente ao encontrar a mesa fria daquele lugar, (apesar da idade que o resto daquele ser demonstrava, que somente agora observo o suficiente para arriscar um palpite sobre). Pelo canto de sua boca já começava a escorrer um pouco do sangue escuro das cavidades dentárias desocupadas.
Enquanto isso meu celular tocou. Eu atendi. Falei com a pessoa que me ligou. Pergunto se ela iria fazer algo naquela noite e se não queria comer algo antes de irmos a uma das boates de rock do centro da cidade. Nisso acho que a minha vizinha de mesa já deveria ter chegado ao siso, eu a beijo na testa e saio do local. Dizendo para que se cuide. Ela murmura algo que não consigo entender e apresso meus passos, pois o tempo parece querer me pregar uma de suas peças e passar mais rápido do que realmente demonstrara.
Fiquei com um pouco das cenas da lanchonete, com a imagem, com as palavras da "senhora dos dentes" na minha cabeça. Perguntava-me se eu tinha fardos e se eu teria alguma vez tido alívio em alguma coisa. Porque as pessoas precisam se atrasar?, eu me perguntava enquanto esperava a minha companhia que eu já supusera de antemão que não chegaria na hora marcada. Ando uns metros e compro uma caipirinha em uma das bancas que fica no local, não me arrisco a pedir outra coisa. – Muito gelo, por favor. – Sim, senhor! Aguardo ali descendo aquela caipirinha mal-feita enquanto eu espero. Esbarram em mim, quase derrubo a bebida por sobre mim, olho. – Desculpa, aí! – Tudo bem, não foi nada. Penso: bicha cega!
Olho o relógio, parece que as horas voltaram ao seu ritmo normal de não quererem terminar nada do que começaram. Cabelos lisos, provavelmente resultado de uma escova bem feita, pele branca, anda de forma elegante e altiva, o mundo a sua volta nada mais é do que lixo, escória, o jeito feminino de andar: que o mundo acabe, mas que eu não saia do salto, eu pensava. – Boa noite, Lis! – Oi, amigo! Ela tinha uma mania de destruir essa imagem de mulher fatal ao encontrar com conhecidos. Eu ria por dentro dessas coisas. – então, vai querer beber algo antes de entrar? Mostrava a bebida em minha mão. – não, acho que não. Não me sinto lá muito bem. Eu agora percebia melhor, uma blusa que acentuava as melhores qualidades femininas de Lis, um decote digno de artista, maquiagem sem exageros, um batom discreto, botas, uma saia rodada, nada curta. Lembrava de quando ficamos pela primeira vez, foi legal, na verdade eu ainda me lembro bem, costumo me lembrar de certas coisas que gostaria de trocar por lembranças mais úteis, porque me lembrava eu sofria: fardos, alívio?
- Então quer água? Ou vamos tomar nosso caminho?
- Á! não sei, porque a pressa?
- Nem sei, acho que é porque alguém costuma atrasar sempre?
Eu ri ao falar isso, ela também riu, pediu desculpas, começou a contar que teve problemas com o computador e que teve que terminar um ensaio da faculdade antes de sair. Ela discorria sobre os motivos do seu atraso e eu ali, minha mente já não prestando atenção no que ela dizia, apenas imaginando, ela ali, uma mulher linda, eu ao seu lado, um cara nada espetacular. Ela com o cigarro na mão, eu a beijei, disse para andarmos um pouco. Já sentados na mesa de um bar, ali naquela noite boêmia, eu conversava, ela ria, eu era bom nisso. – mais uma cerveja, por favor. O garçom acenava com a cabeça, eu entendia estes sinais, sabia a semiótica dos bares, da ralé, eu sabia e não sabia por que deveria saber, mas sim porque eu simplesmente sabia. Acordo ao lado de Lis, o seu apartamento na zona sul do rio dava para lugar nenhum. Mas era mais perto de tudo do que o meu na zona norte. Na verdade era uma casa. Eu levantei, liguei o computador. Água, biscoito. Logo ela se levanta. Beijos, abraço demorado. – Tchau! Eu disse. Tchau! Ela disse.
Alívio. Eu não sabia o que era isso, sabia o que era o sofrimento, mas não sabia o que era esse, esse sentimento de estranho descarregar que alguns descreviam com certo prazer. Não contei nada do café para Lis. Pus-me a andar pelas ruas de Copacabana. Padaria. Pão, café, jornal da banca em frente. Morte, dor, humanidade perdida. Odeio jornais. Pensava agora já com um ar normal: fardos. Que inferno! Porque essas palavras ainda perturbam, aquela mulher deveria ter ficado quieta, isso sim. Tentava pensar no nada. Minha cabeça parecia que carregava todo o peso do mundo. Eu já não agüentava mais. Então, passo por um casal de sem tetos. Eles faziam amor ali, naquela manhã ainda fria de domingo, bem próximos a Nossa Srª. de Copacabana. Essa hora, nenhum movimento, apenas eu, sendo ignorado por eles, pensando no nada. A imagem passava sem filtro pela minha íris se instalando bem no subconsciente. Eu passei. Eles continuaram.
Uma música martelava a minha cabeça. Eu andava e não me sentia mais, estava morto e não sabia? O que acontecia comigo naquele momento? Não ouvia mais meu coração e já não sabia mais onde estava. Eu havia morrido por segundos de uma tristeza que não sentia já fazia tempos, eu morrera para o mundo e o mundo morrera para mim. De repente me vejo despertar deste domínio onírico e agradecer a uma senhorita. Eu ainda estava vivo, não sabia como, mas ainda respirava e andava com alguma desenvoltura. É como se nunca houvesse saído de meu corpo e realmente não saíra. Eu andava e as pessoas se desviavam de mim. Eu ainda existia de algum modo dentro do sistema, dentro dessa rede. Eu inspirei e expirei profundamente.

domingo, junho 21, 2009

O Filho


Eu que gosto tanto do filho que não tive, daquele que antes de vir ao mundo se foi e nunca mais voltará, porque destas viagens nunca se volta. Eu aqui e ele nem mesmo viu meus olhos cheios de lágrimas da alegria de vê-lo dar o primeiro choro. Eu que já estava aprendendo a gostar, de verdade, juro! Ele deve estar bem lá sentadinho ao lado de Deus, pois dizem muitos que eles viram anjinhos quando vão para o outro lado, não e verdade? Diz que sim, só agora, por esses minutos. Me deixa feliz, confortado. Quero ser humano por mais uns instantes, meu amigo. Deixa eu acreditar que o meu amigo imaginário não é imaginário. Sim, eu sei. É, não deveria, mas o faço assim mesmo. Escrevo à memória daquele que nunca foi, nem teve a chance de ser um imortal, pois antes de seu batismo de fogo foi arrancado do solo com suas raízes ainda incapazes de sustentá-lo. Eu queria há tanto tempo ver-te, só agora consigo recriá-lo nestas palavras de um desabafo quase morto, eu que com essa vodka e esse meu amigo, ambos turvos na minha frente, um diz continua, outro diz, vamos para casa. Eu não digo nada, começo a caminhar porque a vodka acabou, o bar fechara, Lapa. Adeus.

O atirador

Eu havia apontado para a cabeça dela um rifle de longo alcance. Ela é louca e deve morrer. Eu também sou louco, mas vou matá-la. Um dia eu também findarei. Talvez eu ainda leve algumas décadas para vir a morrer, mas ela está próxima do fim. Imaginei de mil formas como a cena se desenvolverá, dando um trabalho quase infinito a sua filha para limpar a varanda, as plantas que ela cuidou durante incontáveis primaveras, verões, outonos e invernos. Agora ando pensando em outras mil coisas. Eu já sinto o dedo deslizando pelo gatilho, visualizo o momento exato do êxtase. Daqui a pouco nada dessa discussão fará mais sentido, penso, por quê? Eu nunca havia me perguntado antes isso, mas agora eu me pergunto, por quê? Porque diabos ela deveria morrer por ser louca? Se esse fosse um critério geral a ser seguido pelos atiradores, teríamos muito trabalho com políticos. Prendo o riso, não é momento para isso. Espero. A chuva cai pesadamente pela cidade agitada. Adeus. Olho-a como se fosse a virgem na minha frente, a minha contemplação é somente para ela, eu oro, rogo por suas preces. Vejo a cruz centrar-se bem na presilha do cabelo dela, uma presilha com imitações de brilhantes e que provavelmente deve ter sido comprada por algum impulso do comprar, por comprar. Sua filha sai, dá-lhe um beijo, vejo seus lábios se mexerem, alguma informação que se perde para mim. Gostaria de ler lábios nessas horas, seria bem interessante. Eu sabia que deveria fazer, só não sabia muito bem o porque, mas essas coisas são de fato muito desinteressantes para pessoas com trabalhos parecidos com o meu, por acaso já ouviu falar do atirador que lia Nietzsche? Acho que não meu caro, mas o que importava naquele dia de chuva pesada era a beleza contemplativa daquele momento. Espero que a filha tenha dito que a ama. E agora, finalmente posso te contar: apertei o gatilho e fui embora.

domingo, maio 31, 2009

Eu que fui vitima do amor
Amado contra as minhas vontades
Não havia pedido esta condição
Eu fui amado sem saber que era

Ela que foi vitima da dor
Amando-me com toda vontade
Implorava por esta condição
Tinha amado sem saber a quem

Eu sem saber que era amado
Vivia rodeado de amores
Enebriado por cheiro de flores
Próximo a floresta encantada

Ela sem saber o que era amor
Vivia rodeada de dessabores
Aspirando a flores
Sonhava com um conto de fada

Eu disse: que faço eu por teu amor
Que outros não poderão fazer
Por ti não sinto amor, nem pena
Só não derrame tuas lágrimas de virgem
Moça bela, que por elas não dou preço

Ela: que por mim, talvez, não tenha apreço
Nem que de meu amor queira saber
Por ti sinto amor, desses bem antigos
Se derramo lágrimas virginais
Aqui na alma é amar que não pede em troca

Eu: que este amar teve lá seus usos, não nego
Mas que vem agora me exigir fora de meu tempo
Amor que não mais existe? Tola! Boba! Vais viver!
Meu tempo aqui viverei de um só gole
Nos doces lábios das damas, virgens e meretrizes

Ela: dói-me ca n'alma que se vai perdendo assim...

Eu: sshh que se assim vou me achando,
E achando sigo, que faça assim que um dia te achas

Ela: não! Triste ver meu amor assim terminar!

Amor que nunca começou pode ter fim?
Presa em tempos idos como peça de museu
Amor que reside nas ideias morrerá sem flor
Viva o momento, que o corvo vem vindo
A rima no horizonte so obedece ao vento
À noite ao vinho e a dança

Desejo até sentir este teu fulgor
Mas que por uma noite apenas
Te deseje e a consuma como ao vinho
Levando-me em valsas intermináveis
Incontáveis melodias, carícias e afagos

Desejo até morrer por ti
Mas que seja por uma noite apenas
Depois da embriaguês desfalecer em teus braços
Sob os lençóis, um sonho teu, fechar os olhos
Morrer por instantes, carícias e afagos!

- Wenceslau Teodoro Coral

quinta-feira, janeiro 01, 2009

Crônica

É a fênix que renasce das próprias cinzas, é o dragão que come a própria cauda, é o ciclo de renovação, de morte e desespero que move as nossas vidas em busca de um significado. O que nos leva a dar significado a tudo, mesmo às coisas que não deveriam possuí-lo, dizemos que é desculpa para beber, fazer sexo, sermos felizes por instantes efêmeros e insólitos por vezes.

É o momento único de unir-se toda uma nação na comemoração vazia de um único momento que de tão efêmero se quer necessita divagação, porém, mesmo sendo dessa forma tão fugidio, é assunto para a mais profunda divagação e tristeza do espírito.

É nesse momento que nos damos conta que as nossas promessas que fizemos não serão cumpridas, passamos pelo ritual, ponto final. Amanhã tirarei o meu carro da garagem, enfrentarei trânsito e chegarei à minha sala de trabalho com os nervos enlouquecidos da mesma forma que aconteceu no dia 29, 30... repetindo-se ad infinitum.

E quando novamente a neve estiver a cobrir as pastagens do norte e sol a banhar as praias do sul, iremos novamente para o ritual de morte e renascimento que a nossa sociedade celebra com a mesma contida melancolia, com a mesma “desesperada esperança” que habita o poço profundo de nossas almas. Pois espera-se que tudo mude, assim como o calendário, assim como as estações, assim como toda a boca que beijamos e amamos por uma noite, desejamos por uma noite que tudo fosse diferente.

Feliz ano novo,

Wenceslau T. Coral.